Mortes mal contadas

Por Marcelo Soares

(Escrito em 4 de abril)

O Grupo Gay da Bahia divulgou seu levantamento anual sobre assassinatos de homossexuais no Brasil. Eles detectaram 267 mortes neste ano, um recorde em sua série histórica, segundo reportagem de Aguirre Talento.

Aumento de assassinatos é sempre preocupante. Mas é difícil detectar isso com a metodologia usada pelo grupo. Segundo a reportagem, eles contabilizam mortes com base em notícias publicadas em jornais e na internet. Isso torna impossível comparar os assassinatos de 2011 aos de anos anteriores: só são contados os que se tornaram notícia.

O estudo, portanto, pode medir apenas o aumento da visibilidade das mortes de gays – que é um dos objetivos do estudo, aliás -, não exatamente um aumento nas mortes.

Uma pista disso está na afirmação de que a Bahia, sede do grupo, lidera com 28 mortes o ranking de assassinatos. Como eles têm um papel importante de dar visibilidade ao tema, é difícil saber o quanto sua atuação se reflete no fato de o Estado-sede liderar o levantamento. É bastante possível que, pelo simples fato de estarem lá e ajudarem a fazer as denúncias, as mortes de homossexuais na Bahia cheguem mais facilmente ao seu conhecimento do que as ocorridas em outros Estados brasileiros.

Isso não significa necessariamente que em outros lugares, especialmente mais populosos, haja menos assassinatos de gays. Quanto maior uma população, mais fácil acontecer qualquer coisa nela.

Outros motivos para ler o levantamento com um grão de sal:

  • Nos anos 70, quando o grupo começou a série, eles deviam contar com a cobertura dos jornais locais e dos jornais de referência nacional que chegavam à Bahia. Hoje há uma explosão de sites de notícias e blogs, inclusive temáticos. A base não é a mesma.
  • Nem todo assassinato, seja de quem for, vira notícia. Especialmente em cidades grandes, onde infelizmente tanta gente é morta que o que acaba virando notícia são as chacinas ou as mortes muito inusitadas. Também nem sempre a polícia sabe a sexualidade da vítima na hora em que descobre um assassinato e o informa à imprensa.

O grupo criticou o governo federal por não criar um banco de dados específico sobre crimes contra gays, previsto no Plano Nacional de Direitos Humanos de 2002.

Possivelmente um banco assim seria alimentado com dados de registros de ocorrências, que também são falhos e precisam melhorar muito, mas pelo menos são os dados nos quais as autoridades se baseiam para fazer planejamento de segurança pública.

Também seria impossível comparar as observações do levantamento anual do grupo com os dados de um banco assim.

Outro problema é determinar quando um assassinato é motivado pela sexualidade da vítima. O grupo afirma que “99% desses homicídios têm relação com homofobia”. Sempre desconfio desse tipo de estimativa mas, se considerarmos que o relatório apenas contabiliza mortes noticiadas, até faz algum sentido. É um elemento que transforma um assassinato em notícia. Mas será que é sempre assim?

Esse tipo de afirmação permite a algum gaiato brincar com coisa séria e dizer que a esmagadora maioria dos outros assassinatos ocorridos no país, não tendo gays como vítimas, são “heterofóbicos”. Não é o caso, como os militantes rapidamente dirão.

Qualquer cidadão, independentemente de sua intimidade, está exposto a latrocínios, por exemplo. Talvez, inclusive, seja o caso em algumas das mortes noticiadas e incluídas no relatório. Três latrocínios entre as 267 mortes já derrubariam a retumbante estimativa de “99%”.

Assassinato é coisa séria, mas uso público de estatísticas também é.