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por Marcelo Soares

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Marcelo Soares escreve sobre dados e o que eles podem revelar

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São Paulo virou filme do Zé do Caixão (e os dados de atropelamentos de ciclistas)

Por Marcelo Soares

Se este final de verão paulistano um dia virar filme, o roteiro será do Zé do Caixão.

Primeiro, uma mulher desova cabeças de gente há muito tempo morta em frente a templos religiosos e consulados. Ao ser presa, ela alegou problemas mentais. Ontem, um motorista irresponsável encheu a cara na balada, atropelou e decepou o braço de um ciclista e desovou o braço do ciclista ainda vivo no rio antes de se entregar aos bombeiros, e não à polícia. Ao ser detido, recusou-se a fazer o teste do bafômetro.

Não é a primeira tragédia envolvendo ciclistas na avenida Paulista. Em 2009, morreu lá a ciclista Márcia Prado, atropelada por um ônibus. Há pouco mais de um ano, foi atropelada e morreu na Paulista a bióloga e ciclista Juliana Dias, funcionária do Sírio-Libanês. David de Santos Souza, o ciclista que perdeu o braço ontem, trabalhava limpando vidraças no Instituto do Câncer.

Quando se menciona esses casos, motoristas comentadores de reportagens gostam de dizer que isso prova que a Paulista não é lugar para ciclista e que eles não tinham nada que fazer lá. Pessoalmente, discordo: em vários países os modos de transporte convivem geralmente em paz e o Código de Trânsito Brasileiro tem previsão para bicicletas no trânsito (os motoristas que não compraram sua habilitação talvez tenham lido o texto na auto-escola, mas segue o link para refrescar a memória).

Como este blog trata de dados, porém, resolvi dar uma olhada nos números para ver se é só na Paulista que ciclistas correm risco.

A Secretaria Municipal da Saúde dispõe do Tabnet um sistema semelhante ao Datasus, do Ministério da Saúde, apenas com dados municipais de São Paulo – que, por algum motivo que me escapa, não constam do Datasus, que abrange o Brasil inteiro menos São Paulo. Quando os dados são bem registrados, é possível ter uma boa noção de como se distribuem os casos que levam a internação ou morte hospitalar na cidade.

Não é o caso dos atropelamentos de ciclistas, porém.

Os dados da capital estão atualizados apenas até algum ponto de 2012. Nos 61 atropelamentos de ciclistas lá registrados como tendo ocorrido em 2008,  o distrito de ocorrência está em branco em 9 em cada 10 dos casos. A subnotificação do local de ocorrência cai em 2009, depois da morte de Márcia Prado, que mobilizou os ciclistas da cidade. Mas, ainda assim, entre 2009 e 2012, pouco mais de dois terços dos casos simplesmente não têm o local de ocorrência registrado.

Em 2011, o Metrô divulgou a pesquisa “O Uso de Bicicletas na Região Metropolitana de SP”, que mostrou que o uso da bicicleta como meio de transporte – e não de lazer, como preferem muitos motoristas – é uma realidade que vem crescendo em São Paulo. Mais de 70% das viagens de bicicleta feitas na cidade era para trabalhar. O uso por lazer representava apenas 4% das viagens de bicicleta.

O dado mais interessante dessa pesquisa é que Grajaú, no extremo Sul da cidade de São Paulo, era o distrito líder de uso da bicicleta como meio de transporte. Surpresa, ou não: em 2011, Grajaú foi responsável por 3 em cada 10 atropelamentos de ciclistas registrados com distrito. Em 2012, Grajaú também foi o distrito com mais registros de atropelamentos identificados por local da ocorrência.

Isso não serve como argumento para proibir o uso da bicicleta, como quererão alguns motoristas. Em países um pouquinho mais civilizados do que o nosso, como a Suécia e a Dinamarca, a bicicleta anda na rua junto com os carros.

Isso não se deve a qualidades sobrenaturais do povo dinamarquês, e sim a políticas públicas visando melhorar os níveis de educação no trânsito para garantir que todos os que estão na rua se respeitem mutuamente – sejam motoristas, ciclistas ou pedestres. Todos, enfim, têm o mesmo objetivo: sair de um lugar e chegar ao outro em segurança. A diferença é que alguns usam meios que causam mais estrago do que outros quando falta o respeito ou a atenção.

Dois terços das colisões envolvendo ciclistas no Tabnet, entre 2008 e 2012, foram com outros veículos. O resultado é o seguinte:

  • 12% causaram ferimento na cabeça (por isso é importante o ciclista usar capacete)
  • 11% causaram fratura em região não especificada do corpo
  • 8% causaram fratura superficial na cabeça (olha o capacete de novo)
  • 7% causaram fraturas múltiplas
  • 6% causaram outras fraturas na cabeça e partes não especificadas
  • 4% causaram fratura superficial na perna

E por aí vai. Lembre que, além da falha em registrar dados específicos de cada caso, há também uma subnotificação das vítimas. Consta ali apenas uma vítima que já chegou morta ao hospital e quatro mortas no atendimento. Quem morreu na rua não aparece nessa estatística. Muita gente que se machucou no trânsito não foi ao hospital registrar.

***

Pedestre convicto, tenho mais medo dos maus motoristas do que da louca das caveiras desse grande filme do Zé do Caixão que é a cidade de São Paulo.

Nos comentários sobre a notícia do atropelamento, vi gente dizendo que o fato é uma prova de que a Lei Seca não funciona. Ora, isso prova apenas um defeito da Lei Seca: a escassez de fiscalização.

É eloquente o depoimento deixado no Facebook pela médica Rachel Baptista, que fazia parte da equipe que tentou salvar o braço do ciclista – cujo braço poderia ter sido reimplantado caso o motorista barbeiro não tivesse jogado o membro no rio. Ela diz:

Estávamos prontos para tentar o reimplante e infelizmente a policia juntamente com os bombeiros não conseguiram encontrar o braço no rio. O tempo de tentativa já se foi e nos restou somente a opção de limpar e suturar a ferida. O paciente esta estável e foi terminada a cirurgia.

Sou totalmente a favor da lei seca e de tolerância zero. Não há como ter brechas permitindo pessoas totalmente irresponsáveis dirigirem nestas condições. Tem que haver justiça neste pais.

Todas as blitze serão poucas para finalmente fazer cair a ficha de tantos maus motoristas que há em São Paulo. Quando a ficha cair, o telefonema vai dizer que todo mundo tem que ser respeitado na rua, que o fato de estar dirigindo não justifica agir como o Pateta naquele clássico desenho da Disney.

Mas essa grande ficha em algum momento vai cair, como escreveu nesta semana o gênio Laerte.

 

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