O Felipe Bächtold, correspondente da Agência Folha em Porto Alegre, informa hoje no site da Folha que, após denúncia anônima de sonegação de provas, a Polícia Civil e o Ministério Público recolheram na Prefeitura de Santa Maria uma caixa com documentos até agora desconhecidos sobre a boate Kiss, que pegou fogo no dia 27 de janeiro.
“A caixa continha um ofício que é considerado pelos delegados como o “mais importante” entre os papéis obtidos do município. O arquivo trazia a informação de que, em 2009, um arquiteto da prefeitura apontou quase 30 falhas de estrutura que deveriam ser corrigidas na boate. Ainda assim, diz a polícia, a administração municipal concedeu licenças para o estabelecimento.”
Fiz parte da equipe que cobriu o caso da boate nos primeiros dias após o incêndio.
No dia 29, primeiro dia em que os órgãos municipais abriram suas portas, fui cedo até a prefeitura e sentei na sala da Secretaria de Obras junto com todos os munícipes que queriam protocolar ou se informar sobre obras e inspeções em seus imóveis. A secretaria funciona num prédio público gaúcho da década de 1960, com paredes adornadas por um estilo de arte que eu apelidei de “realismo brizolista”:
Tirei minha senha e esperei, como qualquer um deve fazer. Ao ser atendido, minha primeira pergunta foi: “documentos de fiscalização de prédios são públicos, certo?”
A atendente disse: “claro”.
Eu: “então. Preciso de cópias dos documentos de inspeção na boate Kiss.”
A funcionária pública ficou pálida e se dirigiu a uma sala nos fundos para deliberar. Ao voltar, disse que não poderia fornecer os dados, porque eu sou jornalista e o caso era especial.
Argumentei: “mas não estou pedindo nada além do que qualquer cidadão pode pedir; se aquela senhora ali quiser se informar sobre a obra de um vizinho, não pode?”
Ela: “pode, mas o sr. é jornalista”.
Ou seja: para as autoridades dispostas a ocultar informação, jornalista tem menos direito a receber informações públicas do que qualquer outro cidadão.
Nisso, ela me levou para tomar duas horas de chá de banco no quarto andar do prédio da prefeitura. Saí de mãos abanando. Naquela manhã, me informaram, os secretários estavam todos reunidos para deliberar sobre os documentos da Kiss.
À tarde, o prefeito convocou uma entrevista coletiva para distribuir cópias dos alvarás e da planta, para demonstrar a transparência da prefeitura. Eu estava na entrevista coletiva e, admito, fiquei satisfeito com os documentos. Até perguntei se havia mais, mas disseram que não havia. (Leia a reportagem que publicamos no dia.)
Naquele momento, os documentos fornecidos colocaram a batata-quente na mão dos bombeiros (leia a reportagem que publicamos) — que certamente mereciam, pelo que definiu o inquérito . Mas, como a polícia apurou, eles não estavam sozinhos no mérito.
O que se aprende com isso: quando as autoridades enrolam muito para fornecer informações públicas, pode ter certeza de que estão escondendo alguma coisa.
Não sei se a polícia civil santamariense vai fundamentar com isto, mas a Lei de Acesso a Informações Públicas , em seu artigo 32, determina:
Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar:
I – recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa;
II – utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública;
III – agir com dolo ou má-fé na análise das solicitações de acesso à informação;
IV – divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal;
V – impor sigilo à informação para obter proveito pessoal ou de terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal cometido por si ou por outrem;
VI – ocultar da revisão de autoridade superior competente informação sigilosa para beneficiar a si ou a outrem, ou em prejuízo de terceiros; e
VII – destruir ou subtrair, por qualquer meio, documentos concernentes a possíveis violações de direitos humanos por parte de agentes do Estado.
§ 1o Atendido o princípio do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, as condutas descritas no caput serão consideradas:
I – para fins dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas, transgressões militares médias ou graves, segundo os critérios neles estabelecidos, desde que não tipificadas em lei como crime ou contravenção penal; ou
II – para fins do disposto na Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e suas alterações, infrações administrativas, que deverão ser apenadas, no mínimo, com suspensão, segundo os critérios nela estabelecidos.
§ 2o Pelas condutas descritas no caput, poderá o militar ou agente público responder, também, por improbidade administrativa, conforme o disposto nas Leis nos 1.079, de 10 de abril de 1950, e 8.429, de 2 de junho de 1992.