Afinal de Contas

por Marcelo Soares

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Marcelo Soares escreve sobre dados e o que eles podem revelar

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A lenda do voto nulo

Por Marcelo Soares

Todo ano de eleição, circulam correntes pela internet com saídas supostamente mágicas para forçar a política a ser exercida com moralidade. As duas principais balas de prata sugeridas nessas correntes são ninguém reeleger político nenhum e todo mundo votar nulo.

Eu detesto correntes de internet, por mais bem intencionadas que sejam. Embora a intenção seja sempre boa (só está contente com a nossa representação quem está muito por fora ou muito por dentro), falta um pouco de noção a essas propostas. Como, de resto, falta noção a qualquer corrente de internet.

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Perceba que as duas opções são razoáveis individualmente. Se você conhece um candidato que nunca exerceu mandato nenhum e o acha sério, é plenamente razoável tentar elegê-lo. Se você, por outro lado, não achou nenhum candidato que preste, é plenamente razoável anular seu voto. Mas é difícil combinar com gente suficiente pra não reeleger ninguém ou para todo mundo votar nulo.

Por quê? Os políticos que você não quer ver eleitos sempre acabarão tendo uma razoável quantidade de votos, seja por popularidade ou por outros expedientes.

Não reeleger ninguém não é por si garantia de melhor representação. Você pode trocar as moscas à vontade – se mantiver a iguaria que as atrai, no caso todos os incentivos à falta de transparência e ao abuso do poder, tanto faz se as moscas são velhas ou novas. No limite, o “não reeleja ninguém” deu uma bela força à eleição do novato Tiririca. Parabéns aos envolvidos, né? Sucesso absoluto.

Mas é do voto nulo que eu queria falar aqui, seguindo mote dado pelo amigo Jener Gomes, interlocutor de alguns dos melhores papos do meu tempo de faculdade.

Já votei nulo algumas vezes na vida. Acho uma opção pessoal válida, desde que se tenha consciência de que isso implica em ter seu voto simplesmente desconsiderado. O que elege um candidato são os votos válidos; quem votou nulo, branco ou não foi votar simplesmente lavou as mãos e deixou os outros escolherem. Em 2006, o ministro Marco Aurélio de Mello disse à Folha que voto nulo não anula eleição.

Vamos analisar os votos nulos primeiro com matemática simples e depois com um caso concreto que virou corrente.

1) Matemática

Digamos que a cidade de São Longuinho do Passa Longe tenha 1.000 habitantes. Lá, vive o candidato Huguinho, dono de uma notória fama de ladrão. Também concorrem os candidatos Zezinho, com fama de burro, e Luizinho, sem fama de nada e também sem votos.

O candidato Huguinho tem 200 apoiadores garantidos – sejam amigos seus, pessoas que concordam com suas ideias ou parentes de funcionários dele –  e consegue comprar o apoio de outros 100 eleitores. Com isso, ele tem 30% dos votos da cidade. Sua eleição não está garantida, por isso ele bota carros de som na cidade tocando Michel Teló a todo volume e gritando seu nome aos quatro ventos. Isso pode lhe garantir talvez 50 votos de indecisos, com sorte.

Agora, digamos que um líder comunitário de Passa Longe, muito bem intencionado, resolva criar um movimento de voto nulo contra os maus políticos da cidade. Com muito esforço, ele consegue convencer 300 eleitores a topar sua proposta. Excelente – é o número de eleitores que Huguinho, o grande motivador da campanha pelo voto nulo, tem garantidos. Sucesso?

No dia da eleição, abrem-se as urnas. Este é o resultado:

Huguinho – 310 votos
Zezinho –  190 votos
Luizinho – 100 votos (na esteira do “não reeleja ninguém”)
Brancos – 100 votos
Nulos –  300 votos

Brancos e nulos não contam para o resultado de uma eleição. Contam os válidos. Para vencer, em cidades pequenas como Passa Longe, o sujeito precisa ter apenas mais votos que os outros. Só em cidades com mais de 200 mil eleitores é preciso ter mais da metade dos votos para ganhar sem segundo turno. Ou seja: numa capital, com a proporção de votos  com que X ficou com a campanha do voto nulo, ele seria eleito no primeiro turno.

Se todos tivessem votado em alguém, X teria tido 31% dos votos. Com a ajuda de brancos e nulos, porém, X teve 51,7% dos votos válidos. Parabéns aos criadores da campanha: deram a maior força para quem não queriam ver eleito.

2) Corrente

A corrente que recebi hoje pela manhã no Facebook louvava a consciência cívica do povo de Bom Jesus de Itabapoana, no norte do Rio de Janeiro. Eles teriam anulado quase nove em cada dez votos na eleição de 2008, forçando uma nova eleição.

Será que era isso mesmo? Claro que nunca é bem assim. Por partes:

a) Sim, houve 89,2% de votos nulos na cidade. Isso porque os dois candidatos mais populares tiveram suas candidaturas indeferidas e concorreram amparados por liminares. Só que as liminares caíram antes da votação. Todos os votos depositados para eles foram considerados nulos, mas quem votou neles votou em alguém. Não acho que votar em candidatos indeferidos seja uma lição de cidadania, como quer a corrente.

b) O vencedor ficou sendo o terceiro colocado, que teve 6% dos votos. Isso não representa exatamente a vontade do eleitorado, embora em muitos lugares seja o que prevalece quando os candidatos são sucessivamente eliminados por conta de irregularidades. Ainda em maio, no Piauí, tomou posse uma vereadora eleita com apenas um voto, porque os eleitos antes dela foram cassados.

c) Inicialmente, ainda em outubro de 2008, a Justiça Eleitoral do Rio pensou em fazer novas eleições. Isso tem custo, que sai do bolso do contribuinte. Só que a Justiça Eleitoral é um caso raro no ambiente institucional. Ela é ligada ao Judiciário, mas tem funções dos três Poderes em época de eleição. Legisla, por meio das resoluções. Executa, administrando as eleições. E julga os casos de conflito. Assim, é bastante comum ela levar em conta o custo de administrar nova eleição para decidir conflitos, decidindo do jeito menos trabalhoso.

(Ainda que decidisse por uma nova eleição, não se iluda: os candidatos sairiam do mesmo ambiente político que gerou os candidatos cassados. Os partidos são os mesmos. Os grupos de influência são os mesmos. As oligarquias, também as mesmas. Mas enfim.)

d) Em dezembro de 2008, o Tribunal Superior Eleitoral se manifestou. O ministro Eros Grau decidiu que uma das candidatas bem votadas e impedidas de concorrer poderia receber os votos e ganhar a eleição. Apoiou-se numa tecnicalidade: suas contas foram rejeitadas, sim, mas no momento do registro da candidatura ela não havia ainda sido condenada por isso.

e) Essa candidata que foi impedida de concorrer e depois eleita prefeita continua no cargo até hoje. Neste ano, ela é candidata de novo. Sua candidatura aguarda julgamento. O outro candidato que teve seus votos anulados em 2008 também concorre de novo neste ano.

Mas então, o que fazer?

Se você decide escolher algum, as opções são aquelas que você acha ruins.

Se você não participa da escolha, outros escolhem por você.

A única certeza é a de que o cargo disputado NÃO ficará vago e que o ocupante vai tomar decisões que afetam sua vida – ou pelo menos seu bolso. Seja quem for eleito, ele ou ela vai representar você – por menos que você goste da ideia.

Ninguém disse que viver numa democracia era necessariamente fácil, enfim. Num próximo post, exploro algumas possibilidades de fiscalização com o uso de dados.

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